Conversámos com um físico e com um biomecânico. E desvendámos os segredos do sucesso da rapidez de Usain Bolt
AFP/Getty Images
Ponha-se Usain Bolt a correr ao lado de um Tiranossauro Rex nos tempos do Jurássico e o pobre animal teria de comer pó. Tivesse o atleta jamaicano de fugir de um urso em plena floresta e o bicho morreria de fome. Não há outra forma de o descrever: Usain Bolt é um homem que pertence a outro mundo e que está próximo do limite humano. “Nós não fomos feitos para correr extraordinariamente rápido. Ninguém devia correr como Usain Bolt”, explica Carlos Fiolhais, físico e professor universitário português. Mas ele corre. Porquê?
Desengane-se quem acha que a corrida dos 100 metros foi feita para homens como Usain Bolt. Em certa medida, ele desafia as leis da ciência.É demasiado alto, demasiado pesado, as suas pernas são demasiado longas, a sua partida é particularmente fraca. Tudo o que é dele não o recomenda para a coisa. Ainda assim, é o detentor do recorde mundial na modalidade: fez cem metros em 9,58 segundos no Campeonato Mundial de Atletismo em Berlim, 2009.
Quer saber como é o mundo de Bolt? Ponha-se dentro de um carro a quase 44 km/h. Valores desta ordem, no universo do atletismo, podiam ser justificados pelo facto de os atletas costumarem mover as pernas mais depressa do que o normal. Não é o caso de Bolt: o sucesso do velocista jamaicano está nos seus passos, que são mais longos e poderosos. Um passo de Bolt tem 2,50 metros de comprimento. O passo dos seus colegas é 20 centímetros mais curto.
Posto isto, vamos fazer contas. Ao correr os mesmos 100 metros e em condições exatamente iguais, um velocista amador precisa de dar entre 50 e 55 passos para terminar. Os velocistas de elite precisam de muito menos: a cada cem metros dão entre 43 e 45 passos. Bolt não é certamente um atleta amador. Mas o mais surpreendente é que, neste aspeto, é muito mais que um velocista de elite: em média dá apenas 41 passos por corrida. Mas a verdade é que não tem outro remédio. O facto de ter 1,95 metros de altura e 95 quilos de peso só lhe dificulta a tarefa de ser o melhor do mundo. Ainda por cima, não consegue dar passos curtos no início da corrida (o que seria ideal para conseguir acelerar mais). Então usa outra estratégia: toca menos vezes no chão, mas dele absorve mais força, e por isso dá passos mais longos. É assim que consegue chegar à velocidade máxima em menos tempo.
Usain Bolt não é alado, mas parece. Quando atinge a velocidade máxima – coisa que consegue fazer menos de quatro segundos depois do início da corrida – o pé do atleta fica apenas 0,08 segundos em contacto com o chão. É o tempo suficiente para dele retirar a energia que precisa para correr àquela velocidade estonteante. Os outros precisam de cerca de 0,12 segundos para conseguir o mesmo. Em suma, isto significa quevelocistas de elite como este jamaicano passam 60% do tempo da corrida no ar, sem qualquer contacto com o chão. Atletas amadores precisam de ir ao chão buscar força mais vezes, e portanto passam apenas 50% do tempo no ar.
É certo que para o velocista de 29 anos tudo isto parece extremamente fácil. Mas não é, explica um estudo do Europen Journal of Physics. Com os pés assentes nos blocos de partida, Usain Bolt sai da sua posição inicial com velocidade nula, como qualquer um (estão parados). Quando começa a corrida, vai buscar aceleração a esse bloco (já lá vamos) e alcança o seu poder máximo menos de um segundo depois do início da corrida.
Nesta altura, ainda nem sequer está a correr a metade da velocidade que é capaz de atingir. A culpa é do arrasto, uma força de resistência que desacelera os corpos em movimento. Como é mais alto que os outros, a força de resistência que atua sobre Bolt é muito maior (a isto se chama coeficiente de arrasto e é maior em corpos maiores): de toda a energia muscular que cria, apenas 8% é usada para manter o movimento. A restante é absorvida por essa força de arrasto.
As coisas seriam mais fáceis para Bolt noutro universo: num planeta com uma atmosfera menos densa, o recorde seria ainda maior. Numa altitude superior, Bolt teria a tarefa facilitada: lá em cima, a resistência do ar é menor. Isto mesmo confirma-nos o biomecânico Sérgio Gonçalves. É que, diz-nos a Lei da Inércia de Newton, num mundo perfeito, onde nada se interferisse no movimento de Bolt – nem sequer a resistência do ar -, o esforço que teria de fazer seria muito menor porque “um corpo em movimento tende a permanecer em movimento”.
Mas este velocista sabe como contornar os obstáculos: produz muito trabalho (W), a palavra que a Ciência usa para descrever a energia produzida. A força muscular de Usain Bolt pode chegar aos 2620 W. Isto equivale ao trabalho produzido por dois microondas juntos. E também desenvolve muita força quando toca no chão. É por isso que a ciência é amiga de Usain Bolt. De acordo com a Terceira Lei de Newton (ou a Lei da Ação-Reação), “para toda a interação, na forma de força, que um corpo A aplique sobre um corpo B, este irá exercer no corpo A uma força de igual direção e valor, mas com sentido oposto”.
Simplificando: sempre que Bolt dá um passo, recebe do chão uma força de valor igual àquela que nele aplica. É assim que consegue gerar impulso, tanto quando parte (indo buscar energia ao bloco de partida), como durante a corrida, de cada vez que os pés tocam no chão. Ora, como já explicámos, as pernas de Bolt são demasiado grandes para que ele consiga dar muitos passos. Por isso, a sua estratégia é outra: dar menos passos, mas com eles conseguir absorver mais força.
Olhemos à lupa para os movimentos de Bolt. Há quem diga que o arranque do atleta jamaicano deixa muito a desejar, porque poderia reagir mais depressa. Nos primeiros vinte metros de corrida (fase de arranque), mantém o corpo para frente para vencer a resistência do ar, mas depois endireita-se rapidamente. Tudo fica alinhado: o movimento dos braços acompanha o das pernas, o tronco fica na vertical e a cabeça permanece direita. Isto permite-lhe manter uma velocidade constante até chegar aos últimos vinte metros da corrida. Tal como os outros colegas de profissão, Bolt desacelera nesta fase. Mas tem duas vantagens: primeiro, desacelera menos. E depois dá passos muito mais compridos. Portanto, no início da corrida as pernas de Bolt são como molas. No final, são como remos.
Depois, há a genética. Usain Bolt consegue gerar toda esta energia pelo facto de ter mais fibra muscular de contração rápida.Graças a isso, o velocista jamaicano consegue gastar muito menos tempo no chão e ter mais propulsão para a frente. Além disso, tem fascículos musculares mais longos (o conjunto de fibras que transmitem impulsos elétricos maiores). Também tem o tendão de Aquiles mais curto e os dedos dos pés mais compridos, que lhe permitemaplicar mais força no chão durante mais tempo.
Mas esta é só uma parte da receita. A outra corre-lhe no sangue: os jamaicanos são naturalmente mais propensos a corridas emsprint por causa de um gene especial, o ACTN3. 75% dos jamaicanos têm este gene, contra apenas 70% dos norte-americanos em que esta pecinha aparece no ADN. Mas ter o gene não basta: é preciso expressá-lo. E o solo rico em alumínio da Jamaica aumenta a capacidade de expressão do gene.
Para o biomecânico Sérgio Gonçalves, Usain Bolt é um atleta “contra-natura”: de um ponto de vista físico, ele não e tão aerodinâmico quanto os outros colegas. E não só por causa das suas características físicas, mas também porque quanto maior a velocidade de um corpo, maior a resistência que o ar oferece. Atingindo os 44 km/h, Usain Bolt tem de produzir ainda mais força para contrariar essa resistência. Mas sabe bem fazê-lo: quando corre, leva o calcanhar aos glúteos, o que diminui a inércia que a perna leva desde que vai para trás até que começa a ir para a frente. Isto permite poupar os fletores da anca. Ganha tempo e armazena mais energia.
E agora, pode Usain Bolt ser ainda mais rápido? Carlos Fiolhais diz-nos que sim, em duas circunstâncias: se o atleta reagir mais depressa ao tiro e começar a corrida mais cedo do que normalmente faz; ou se o vento estiver favorável à direção do seu movimento e conseguir “empurrar” Bolt pela pista fora. Ainda assim, ele está quase no limite humano. A partir de agora, acredita o físico português, Bolt vai obrigar o Comité Olímpico a reinventar os relógios: “O mais provável é que, a partir de uma altura, os recordes sejam medidos aos milésimos de segundo. Usain Bolt já está a roçar o limite humano. Acredito que alguém o vá ultrapassar um dia, mas apenas por uma diferença quase insignificante”.
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